Ao
ser promulgada em 1988, a atual Constituição Federal representou a incorporação
de diversos direitos sociais e individuais, sobretudo de grupos
tradicionalmente minorizados e invisibilizados. Um destes grupos foi justamente
o das crianças e adolescentes. É nesse contexto que surge, há exatos 23 anos, o
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Nesse período, o Estatuto produziu
transformações importantes na cultura política brasileira, com mudanças
paulatinas nas relações familiares, comunitárias sociais e institucionais.
Está
cada vez mais claro para a sociedade que crianças e adolescentes são sujeitos
de direitos, embora estes não sejam respeitados e atendidos em sua totalidade.
Para nós, isso significa que há sim o que comemorar, pois está em marcha uma
ruptura com a história de anonimato e de absoluta inferiorização da infância
brasileira.
Infelizmente
porém, ainda há muito a exigir, pois a garantia dos direitos das crianças e
adolescentes pelo poder público no Brasil está distante do que preconiza o ECA.
Mais que isso, é preciso lutar para impedir retrocessos nos direitos
garantidos, em especial no que tange à idade penal dos adolescentes que se
encontram em cumprimento de medidas socioeducativas.
Existem
hoje dados suficientes para afirmar que, no Brasil, os adolescentes são mais
vítimas do que algozes. É o que mostra, por exemplo, a edição de 2012 do Mapa
da Violência. Lá vemos que, em 2010, foram mais de 8.600 crianças e
adolescentes assassinadas. Ainda segundo o mesmo estudo, o Brasil tem a 4ª
maior taxa de homicídio contra crianças e adolescentes de até 19 anos entre 99
países pesquisados. Ficamos atrás somente de El Salvador, Venezuela e Trinidade
e Tobago. Outro dado relevante é o que aparece em um levantamento do Disque
100, que recebe denúncias de violações de direitos humanos. Só em 2012, o
serviço recebeu 120 mil denúncias de violações de direitos de crianças e
adolescentes, especialmente agressões e maus tratos.
Ao
mesmo tempo em que são vítimas constantes, apenas uma minoria de nossas
crianças e jovens se envolvem em atos infracionais. Dos cerca de 20 milhões de
adolescentes brasileiros (segundo dados de 2010 do IBGE), apenas 19 mil cumprem
medidas socioeducativas em meio fechado, representando não mais que 0.07% do
total, de acordo com informações de 2011 da Secretaria de Direitos Humanos.
Observa-se,
nos últimos anos, uma redução no número de práticas infracionais graves
cometidas por adolescentes. Segundo levantamento do Conselho Nacional de
Justiça (2012), houve uma redução dos atos graves contra pessoas entre 2002 e
2011: homicídio, de 14,9% para 8,4%; latrocínio de 5,5% para 1,9%; estupro de
3,3% para 1,0% e lesão corporal de 2,2% para 1,3%. As infrações cometidas por
adolescentes concentram-se hoje nos crimes contra o patrimônio (38%) e no
tráfico (26.6%).
Esse
conjunto de dados indica que a solução da questão passa por investir no
desenvolvimento desses adolescentes, por meio de políticas públicas adequadas,
e não pelo seu encarceramento no sistema prisional!
As
instituições, em especial o Congresso, devem pensar a construção de mecanismos
que assegurem políticas públicas preventivas, de modo que todas as crianças
tenham direito a educação infantil, que todas elas tenham direito a educação
integral, para não iniciarem uma trajetória infracional na adolescência. E é
preciso exigir do Poder Executivo o cumprimento efetivo da lei que cria o
Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), aprovada no ano
passado pelo Congresso Nacional, garantindo aos adolescentes em cumprimento de
medidas socioeducativas o acesso aos dispositivos ali estabelecidos.
Penso
que se o ECA fosse cumprido na sua integralidade, não haveria nenhuma criança
fora da creche; não haveria por volta de 26% de meninas e meninos com até cinco
anos de idade fora da escola; e haveria políticas que possibilitassem a
existência humana digna aos nossos meninos e meninas. E assim não seria
necessário pensar em encarceramento nesse país.
Um
país que não possibilita à criança ser criança repete a lógica pontuada por
Betinho de forma tão lúcida: quando não conseguimos ver uma criança ou um
adolescente como tais, é porque estes foram vítimas de tantas violações que só
conseguimos ver o que fizeram contra eles. Por isso eu digo não à redução da
maioridade penal, e ao endurecimento das medidas socioeducativas, e digo sim ao
investimento no desenvolvimento das crianças e adolescentes brasileiras, como
forma de desenvolvimento do Brasil!
Artigo de opinião de Erika Kokay sobre os 23 anos do ECA,
publicado na edição do dia 13 de julho (sábado) do jornal Correio Braziliense,
na sessão Opinião.
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